Joyce,
os Nós Borromeanos e o Sinthoma
Renata
Craviée F. Mendonça
Na
tentativa de compreensão da estrutura psicótica de Joyce, da formulação
lacaniana dos nós borromeanos e, sobretudo do seu conceito de sinthoma,
percorremos algumas de suas proposições, trabalhadas em seu Seminário: “O
Sinthoma (1975-1976)”.
Questão
de suma importância para o entendimento da psicose refere-se ao uso particular
realizado da língua, ou seja, trata-se
de uma construção própria a que se dedica Joyce. A escrita de Joyce em seu
último livro: “Finnegans Wake”
apresenta-se como “lalíngua”, isto é,
a partir do uso de palavras-valise. A produção de palavras-valise encontra-se
localizada em um campo de defesa contra a morte psíquica, trata-se de um uso
particular das palavras, visando a própria sobrevivência. Importante ressaltar
que se trata de uma produção própria do sujeito dentro do campo do outro,
introduzindo algo do francês na língua inglesa. Que no caso de Joyce toma ares
de mania, sobretudo na escrita de seu livro “Finnegans Wake.”
A
escrita de Joyce contém em si uma identificação ao significante “artista”, ou seja, é por uma via de
identificação a esse significante que temos a estruturação do ego de Joyce.
Assim, na ausência do nome-do-pai, Joyce escolhe “o artista” enquanto uma suplência. O que Lacan nos propõe em
relação à psicose ordinária de Joyce é que a amarração dos registros simbólico,
imaginário e real se dá pela identificação a esse significante, o que evita o
surgimento dos surtos.
O
que Lacan observa em relação a Joyce é que não há fenômenos elementares, como
delírios ou alucinações, embora possamos dizer de uma estrutura psicótica.
Neste sentido, cabe tentarmos compreender o que está em jogo na psicose
ordinária de Joyce. Como podemos pensar as amarrações dos três registros do
aparelho psíquico? Real, Simbólico e Imaginário? Pois se não há soltura do
imaginário, através de surtos psicóticos, como os registros se mantém
enlaçados?
Neste
sentido, não podemos desconsiderar que a pedra angular da constituição dos
sujeitos localiza-se no recalque originário, pois a partir dele o sujeito
escolhe recalcar, foracluir ou recusar, que são os mecanismos próprios as três
estruturas clínicas: neurose, psicose ou perversão, a qual o sujeito assente.
Lacan
nos aponta que o primeiro elemento do recalque originário é o pai, ou seja, a
lei, uma vez que, a mãe está submetida a ela, pois fala em nome do pai. Essa
lei pode ser representada pelo significante mestre, que é a condição de
possibilidade da instauração do sujeito na cadeia significante. Neste sentido,
dizer da foraclusão do nome-do-pai não é o mesmo de dizer que a castração não
incidiu, não se trata disso. O nome-do-pai, ao contrário, enquanto significante
mestre é retirado do “enchame” e a partir daí teremos: recalque, foraclusão ou
desmentido.
Por
outro lado, Lacan afirma que nenhum significante pode representar o sujeito,
pois este é um puro vazio, um puro “vir-a-ser”,
é evanescente. Quando Joyce usa o significante “riverrum” ele encontra-se tomado pelas palavras-valise e assim
perde o controle da cadeia significante, o que nos permite dizer de sua
psicose. Aparece aqui a dimensão da foraclusão do nome-do-pai.
Lacan
utiliza como ponto de referência para dizer da psicose de Joyce a epifania, uma
soltura do imaginário, isto é, este apresentava uma súbita manifestação
espiritual, que pode ser compreendida como saídas do corpo, emergência do
encontro com o real. O sinthoma joyciano: “ser
o artista” representava, portanto, uma solução para o sujeito, no sentido
de manter amarrados, circunscritos os seus registros do aparelho psíquico,
evitando assim a necessidade de uma análise.
Pode-se
recolher um esforço de Joyce de desmontagem da língua inglesa para remontar ao
mais puro estilo de Lewis Carroll de “Alice
no País das Maravilhas”. O que nos indica a prevalência do processo
primário, do princípio do prazer, que visa à satisfação imediata. Carrol brinca
com a linguagem em seu livro, apela ao nosso princípio do prazer, ou processo
primário nos causando o riso, o humor. Trata-se do humor do “não-sense”, da falta de lógica. Com
Joyce, o que está em jogo não é uma tentativa intencionada de brincar com a
língua, mas antes uma articulação dos registros: simbólico, imaginário e real
através de um quarto elo, o sinthoma: o ego de Joyce. Estruturado a partir da
identificação ao significante “artista”.
Lacan
trata do nó borromeano enquanto um ponto de basta, algo de uma sustentação do
sujeito, escritura que o revela. E que guarda uma dimensão de real. Lacan
modifica toda a sua concepção de sujeito, do aparelho psíquico a partir do nó
borromeano. Neste sentido, o sintoma aparece como uma forma de amarração do
nome-do-pai. Há, no entanto, modos diferentes de se configurar as amarrações. Lacan
(1975-76) as expressa no sintoma, inibição e angústia, as três formas de
amarração do nome-do-pai, ou seja, são três modos de se amarrar o desatamento
do nó borromeano.
Sendo
importante pensar que na primeira formulação lacaniana, temos a ideia de que
todos somos submetidos ao nome-do-pai, organizando a nossa estrutura psíquica,
ao passo que, no seu último ensino a estrutura não mais se dá a partir do
nome-do-pai, trata-se agora de uma perversão do pai, ou seja, uma versão do
pai, um desejo orientado em direção a uma mulher. Que equivale a uma formulação
dos nomes-do-pai, no plural, podendo ser nomeada enquanto inibição, sintoma e
angústia, modos diversos entre si de amarração.
A
pai-versão se apresenta como possibilidade de se inscrever no nome-do-pai
através do sinthoma borromeano. No caso de Joyce, essa operação não foi
possível, pois seu pai não apresentava um desejo orientado para uma mulher,
trata-se de um pai carente, um pai que não exerce sua função de pai. O sinthoma
de Joyce nos remete, contudo, a toda uma questão em relação ao pai.
Lacan
afirma, no entanto, que a sustentação do sujeito se dá a partir de um quarto
laço, o sinthoma. No caso da psicose, temos um lapso na medida em que o real
que deveria passar por cima do simbólico, passa por baixo. Portanto, o lapso
aparece quando o real fura o simbólico, e o imaginário fica solto. O que houve
com Joyce é que o seu lapso foi corrigido pelo ego, um dos modos de fazer
sinthoma. O sinthoma aqui é o ego de Joyce. O quarto laço, dado pelo sinthoma
joyciano, é uma suplência à foraclusão do nome-do-pai, um modo de se amarrar os
registros.
Em
relação ao processo analítico, Lacan percebe tratar-se de modos diversos de
amarração e desamarração, que se apresentam no discurso dos sujeitos e que a
análise favorece a construção de novos modos de se amarrar. Trata-se de um jogo
combinatório entre os registros: real, simbólico e imaginário.
Na
psicose a consistência do aparelho psíquico pode se apresentar pela amarração
do sinthoma, que no caso de Joyce se fundamenta na identificação ao “artista”. Na neurose, temos o sinthoma
borromeano, que se dá pelo quarto termo que é o nome-do-pai. Importante
ressaltar que o analista ensina, de certo modo, o analisando a fazer uma emenda
entre o sinthoma e o real, parasita de gozo, ou seja, trata-se de perceber o
gozo que sustenta o sintoma neurótico enquanto direção do tratamento.
Joyce
cerra, circunscreve o seu gozo obscuro a partir da construção dessa
identificação ao significante “artista”,
isto é, como não possuía um nome próprio, que pudesse ter sido transmitido pelo
pai, se utiliza de um nome comum, “o
artista”, como um nome próprio. O nome do “Um” de Joyce, do Um do pai é o
artista. Joyce então responde, de modo a suprir o desenodamento do nó com o
sinthoma.
O
sinthoma de Joyce impedia que ele apresentasse sintomas, ou seja, ele não
apresentava sintomas psicóticos, porque se protegia na nomeação “artista”.
Lacan
(1975-76) nos afirma que Joyce faz uma escolha, uma vez que, precisa encontrar uma
via por onde tomar a verdade. Que nos conduz a sua identificação a nomeação “artista”, a qual parece se fartar.
Interessante a seguinte citação:
Ainda mais
porque a escolha, uma vez feita, não impede ninguém de submetê-la à
confirmação, ou seja, de ser herético de uma boa maneira....a boa maneira é
aquela que, por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar
isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar.
(LACAN, 1975-76, p.16)
Outro
ponto apresentado por Joyce, que também nos remete a estrutura psicótica
refere-se a uma dada equivalência suposta na relação entre o homem e a mulher.
Nora caía como uma luva para Joyce, ou seja, era seu apêndice. Aqui podíamos
afirmar a existência da relação sexual, embora profundamente imaginária. Aqui a
mulher contém o homem. Nora faz uma borda ao real de Joyce, cai como uma luva
ao avesso de seu gozo obscuro, ao transbordamento do real. Trata-se de uma luva
ao contrário que amarra. Contorna o gozo obscuro de Joyce. Nora não possui,
portanto, para Joyce o significado da mulher amada, mas antes daquela que lhe
cai como uma luva.
Mas
cabe apontarmos que o que a psicanálise vem desvelar no plano da relação entre
os sexos é exatamente a não complementariedade, a não proporção sexual entre o
homem e a mulher. O que nos condena a uma solidão existencial, a qual, temos
que nos haver. É no Seminário XX de Lacan que a dimensão do sujeito aparece
associada à dimensão do corpo. De um sujeito que deve ser compreendido encore, isto é, “no corpo”. A inscrição significante no corpo real do sujeito passa
a ser definida como parlêtre ou falasser, uma vez que, o sujeito é um
ser falante.
A
noção de falasser nos aponta que o significante não possui apenas o efeito de
significado, tem também um efeito de fazer uma afetação no corpo do sujeito. O
significante afeta o corpo do sujeito, o seu corpo real. Trata-se do efeito de
gozo e do efeito de sujeito, situado em um corpo. O que quer dizer que o
significante deixa no corpo traços.
O
sujeito do inconsciente, puro sujeito da lógica, passa a ser um sujeito com um
corpo afetado pelo significante. Ao tratar dos significantes, chegamos a noção
de discurso, proposta por Lacan (1969-70). Este afirma que todo discurso é
semblante. E neste sentido, a relação entre os sexos se dá no plano de um fazer
semblante que “possui o falo”, do
lado masculino e fazer semblante “que o é”,
do lado feminino. A mulher escolhe um homem, ao qual, deseja fazer semblante.
Na
psicose não se trata de semblante na relação entre os sexos, mas sim de uma
suposta complementariedade, é como se a relação sexual existisse. A luva de
Nora à Joyce encontra-se nesta dimensão.
Em
relação ao nó borromeano, Lacan (1975-76) ressalta como característico o fato
de que se um dos seus elos se soltar, os demais também se soltam. Afirma que é
preciso supor tetrádico, o que faz o laço borromeano, ou seja, a perversão, que
quer dizer “versão em direção ao pai”,
sendo, portanto, o pai um sinthoma. Trata-se de estabelecer o laço entre
imaginário, simbólico e real, a partir da ex-sistência do sintoma.
Deste
modo, podemos pensar o complexo de édipo, enquanto tal, como um sintoma. Na
medida em que o Nome-do-Pai é também o pai do Nome e assim tudo se sustenta, o
que não torna o sintoma menos necessário.
Em
Joyce, o Outro se manifesta sobrecarregado de pai, na medida em que esse pai,
conforme “Ulisses” para ser
sustentado busca a arte, a qual faz a família de Joyce não apenas subsistir,
mas também torná-la ilustre. Do mesmo modo, torna ilustre, o que chama de “My Coutry”, ou seja, a “alma incriada de minha raça”, tal como
encontramos no final de “Um retrato do
artista”.
Lacan
(1975-76) se pergunta: “Em que o
artifício ser artista pode visar expressamente, o que se apresenta de
início como sintoma? Em que a arte pode desfazer o que se impõe do sintoma? A
saber, a verdade?”
Daremos
prosseguimento as nossas elaborações, visando chegar a uma resposta ao
questionamento anterior. Por ora, podemos afirmar que Joyce escreve como uma
forma de possibilitar a amarração dos registros: imaginário, simbólico e real.
Lacan
(1975-76) qualifica como borromeano, o nó, a partir de suas novas formulações
em relação ao sujeito, o qual, agora é definido como falasser, ou seja, aqui a dimensão do real alcança o seu lugar pela
presença do corpo e este adquire seu estatuto respeitável, graças a esse nó.
Joyce
através de sua arte demonstra um modo privilegiado de amarração dos registros:
imaginário, simbólico e real através do quarto termo: o sinthoma. Cabendo
lembrar que não se trata de um “sinthoma
borromeano”. A amarração dos registros imaginário, simbólico e real por um
quarto elo nos demonstra o fato de que não existe uma unidade perfeita de nó
borromeano. Sendo que a sustentação psíquica do sujeito se dá sempre através do
quarto laço, que é o sinthoma.
O
nó borromeano se configura com a presença do real por baixo, o imaginário em
cima do real e o simbólico por cima do imaginário e por baixo do real. Lacan
nos afirma como borromeano o fato de que dois elos encontram-se livres um do
outro, sustentando a ex-sistência do terceiro, ou seja, do real em relação ao
imaginário e ao simbólico. O que quer dizer que o real só tem ex-sistência ao
encontrar, pelo simbólico e pelo imaginário, a retenção. O sinthoma borromeano
se caracteriza pelo fato de que quando se desfaz um elo, todos se desfazem,
sendo, portanto menos consistente do que o sinthoma na psicose.
O
lapso presente em Joyce encontra-se no enlaçamento do simbólico com o real.
Observa-se uma certa degradação na escrita de Joyce a partir de “Stuart Little” “e do “retrato do artista”. Chegando a um ponto
no qual não há mais ordem. A escrita vai perdendo sua articulação linguajeira,
deixando de apresentar um equilíbrio entre imaginário e simbólico e tornando-se
real. Contudo, não se pode deixar de afirmar um “savoir-faire”, um saber fazer com o sinthoma “artista”, que o
manteve fora do surto.
Interessante
que Lacan (1975-76) em seu Seminário “O Sinthoma” apresenta o inconsciente como
o real, ou seja, como aquilo que se apresenta fora do sentido, fora da
estrutura linguajeira. Afirma, no entanto, que devemos mapeá-lo através do
sinthoma, para que então ele não apareça apenas como gozo obscuro. A análise
permite novos modos de amarração, de circunscrever o gozo. O que o sinthoma faz
é dar um sentido ao real, o circunscreve, evitando que surja de modo
sintomático.
A
saída de Joyce está fundamentada na escrita, que é um fazer que dá suporte ao
pensamento. Segundo Lacan, é através de uma lógica de sacos e cordas que se
pode compreender como Joyce funcionou como escritor. A escrita mostra-se essencial
ao seu ego. A função da escrita para Joyce refere-se a construção de um certo
enquadramento, ou seja, trata-se de algo que pode ser circunscrito. “Ulisses”
de Joyce o demonstra, uma vez que, cada capítulo expressa um dado
enquadramento, um certo sentido.
Lacan
em seu Seminário, livro 23: “O Sinthoma” evidencia que a falha, o lapso entre
os registros psíquicos jamais se produz ao acaso, mas sim dada a uma finalidade
significante. Desta forma, importante nos perguntarmos sobre o sentido a ser
dado ao que Joyce testemunha. Não se trata apenas da relação de Joyce com o seu
corpo, mas sobretudo a psicologia dessa relação. Isto é, a imagem confusa que
temos do nosso próprio corpo.
Lacan
afirma que o masoquismo não está de todo excluído na relação que Joyce mantém
com o sexual. Afirma como impressionante as metáforas que emprega, sobretudo a
algo que se destaca como uma casca. Trata-se de uma relação de repulsa com o
seu próprio corpo. É como alguém que afasta uma lembrança desagradável. A forma
como Joyce deixa cair a relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para
um analista. O fato de não haver nenhum interesse nesse corpo enquanto imagem é
o que assinala que o ego possui para ele uma função particularíssima.
Em
Joyce, o que ocorre é que o ego corrige a relação faltante, ou seja, não enoda
borromeanamente o imaginário ao que faz cadeia com o real e o inconsciente.
Pelo artifício da escrita recompõem-se o nó borromeano.
Lacan
então afirma que é a partir de Joyce que é possível tocar em algo que jamais
havia considerado, a saber: a dimensão do real. O que impressiona no texto de
Joyce é exatamente o número de enigmas que encerra. Apresenta a “diz-mensão”, produzindo equívocos no
leitor. Interessante a pergunta que Lacan se faz nesse sentido: “Joyce, como escritor, por excelência do
enigma não seria a consequência da cerzidura tão malfeita desse ego, de função
enigmática, de função reparadora?”
Suas
epifanias sempre se caracterizam pela mesma coisa, trata-se da consequência do
erro no nó, ou seja, que o inconsciente está ligado ao real. A epifania de
Joyce é o que faz com que graças a falha, inconsciente e real se enodem. A
ruptura do ego libera a relação imaginária, se tornando fácil imaginar que o
imaginário cairá fora, uma vez que, o inconsciente lhe permite isso
incontestavelmente.
Lacan
(1975-76, p.13), ao ler Joyce, afirma: “um
enigma é uma enunciação de uma tal ordem que não lhe encontramos o enunciado:
há um dizer, alguma coisa se diz, mas o que é dito nos escapa”. Neste
sentido, podemos dizer que as entrelinhas do enigma devem ser apreendidas, seus
escritos soam como fora de si, exigindo muito trabalho para aqueles que ousam
lê-lo.
Há
na obra de Joyce enigmas que envolvem seu próprio criador, ou seja, enigmas
que, como um nó bastante particular, se tramam em torno de Joyce, nos escritos
que ele corporifica. São enigmas envolvendo o tema da criação, da paternidade,
da loucura e do nome.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
LACAN,
Jacques. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Trad. Sérgio Laia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.