segunda-feira, 7 de outubro de 2013

CASO SOBRE PSICOSE



Joyce, os Nós Borromeanos e o Sinthoma
 Renata Craviée F. Mendonça


Na tentativa de compreensão da estrutura psicótica de Joyce, da formulação lacaniana dos nós borromeanos e, sobretudo do seu conceito de sinthoma, percorremos algumas de suas proposições, trabalhadas em seu Seminário: “O Sinthoma (1975-1976)”.
Questão de suma importância para o entendimento da psicose refere-se ao uso particular realizado da  língua, ou seja, trata-se de uma construção própria a que se dedica Joyce. A escrita de Joyce em seu último livro: “Finnegans Wake” apresenta-se como “lalíngua”, isto é, a partir do uso de palavras-valise. A produção de palavras-valise encontra-se localizada em um campo de defesa contra a morte psíquica, trata-se de um uso particular das palavras, visando a própria sobrevivência. Importante ressaltar que se trata de uma produção própria do sujeito dentro do campo do outro, introduzindo algo do francês na língua inglesa. Que no caso de Joyce toma ares de mania, sobretudo na escrita de seu livro “Finnegans Wake.”
A escrita de Joyce contém em si uma identificação ao significante “artista”, ou seja, é por uma via de identificação a esse significante que temos a estruturação do ego de Joyce. Assim, na ausência do nome-do-pai, Joyce escolhe “o artista” enquanto uma suplência. O que Lacan nos propõe em relação à psicose ordinária de Joyce é que a amarração dos registros simbólico, imaginário e real se dá pela identificação a esse significante, o que evita o surgimento dos surtos.
O que Lacan observa em relação a Joyce é que não há fenômenos elementares, como delírios ou alucinações, embora possamos dizer de uma estrutura psicótica. Neste sentido, cabe tentarmos compreender o que está em jogo na psicose ordinária de Joyce. Como podemos pensar as amarrações dos três registros do aparelho psíquico? Real, Simbólico e Imaginário? Pois se não há soltura do imaginário, através de surtos psicóticos, como os registros se mantém enlaçados?
Neste sentido, não podemos desconsiderar que a pedra angular da constituição dos sujeitos localiza-se no recalque originário, pois a partir dele o sujeito escolhe recalcar, foracluir ou recusar, que são os mecanismos próprios as três estruturas clínicas: neurose, psicose ou perversão, a qual o sujeito assente.
Lacan nos aponta que o primeiro elemento do recalque originário é o pai, ou seja, a lei, uma vez que, a mãe está submetida a ela, pois fala em nome do pai. Essa lei pode ser representada pelo significante mestre, que é a condição de possibilidade da instauração do sujeito na cadeia significante. Neste sentido, dizer da foraclusão do nome-do-pai não é o mesmo de dizer que a castração não incidiu, não se trata disso. O nome-do-pai, ao contrário, enquanto significante mestre é retirado do “enchame” e a partir daí teremos: recalque, foraclusão ou desmentido.
Por outro lado, Lacan afirma que nenhum significante pode representar o sujeito, pois este é um puro vazio, um puro “vir-a-ser”, é evanescente. Quando Joyce usa o significante “riverrum” ele encontra-se tomado pelas palavras-valise e assim perde o controle da cadeia significante, o que nos permite dizer de sua psicose. Aparece aqui a dimensão da foraclusão do nome-do-pai.
Lacan utiliza como ponto de referência para dizer da psicose de Joyce a epifania, uma soltura do imaginário, isto é, este apresentava uma súbita manifestação espiritual, que pode ser compreendida como saídas do corpo, emergência do encontro com o real. O sinthoma joyciano: “ser o artista” representava, portanto, uma solução para o sujeito, no sentido de manter amarrados, circunscritos os seus registros do aparelho psíquico, evitando assim a necessidade de uma análise.
Pode-se recolher um esforço de Joyce de desmontagem da língua inglesa para remontar ao mais puro estilo de Lewis Carroll de “Alice no País das Maravilhas”. O que nos indica a prevalência do processo primário, do princípio do prazer, que visa à satisfação imediata. Carrol brinca com a linguagem em seu livro, apela ao nosso princípio do prazer, ou processo primário nos causando o riso, o humor. Trata-se do humor do “não-sense”, da falta de lógica. Com Joyce, o que está em jogo não é uma tentativa intencionada de brincar com a língua, mas antes uma articulação dos registros: simbólico, imaginário e real através de um quarto elo, o sinthoma: o ego de Joyce. Estruturado a partir da identificação ao significante “artista”.
Lacan trata do nó borromeano enquanto um ponto de basta, algo de uma sustentação do sujeito, escritura que o revela. E que guarda uma dimensão de real. Lacan modifica toda a sua concepção de sujeito, do aparelho psíquico a partir do nó borromeano. Neste sentido, o sintoma aparece como uma forma de amarração do nome-do-pai. Há, no entanto, modos diferentes de se configurar as amarrações. Lacan (1975-76) as expressa no sintoma, inibição e angústia, as três formas de amarração do nome-do-pai, ou seja, são três modos de se amarrar o desatamento do nó borromeano.
Sendo importante pensar que na primeira formulação lacaniana, temos a ideia de que todos somos submetidos ao nome-do-pai, organizando a nossa estrutura psíquica, ao passo que, no seu último ensino a estrutura não mais se dá a partir do nome-do-pai, trata-se agora de uma perversão do pai, ou seja, uma versão do pai, um desejo orientado em direção a uma mulher. Que equivale a uma formulação dos nomes-do-pai, no plural, podendo ser nomeada enquanto inibição, sintoma e angústia, modos diversos entre si de amarração.
A pai-versão se apresenta como possibilidade de se inscrever no nome-do-pai através do sinthoma borromeano. No caso de Joyce, essa operação não foi possível, pois seu pai não apresentava um desejo orientado para uma mulher, trata-se de um pai carente, um pai que não exerce sua função de pai. O sinthoma de Joyce nos remete, contudo, a toda uma questão em relação ao pai.
Lacan afirma, no entanto, que a sustentação do sujeito se dá a partir de um quarto laço, o sinthoma. No caso da psicose, temos um lapso na medida em que o real que deveria passar por cima do simbólico, passa por baixo. Portanto, o lapso aparece quando o real fura o simbólico, e o imaginário fica solto. O que houve com Joyce é que o seu lapso foi corrigido pelo ego, um dos modos de fazer sinthoma. O sinthoma aqui é o ego de Joyce. O quarto laço, dado pelo sinthoma joyciano, é uma suplência à foraclusão do nome-do-pai, um modo de se amarrar os registros.
Em relação ao processo analítico, Lacan percebe tratar-se de modos diversos de amarração e desamarração, que se apresentam no discurso dos sujeitos e que a análise favorece a construção de novos modos de se amarrar. Trata-se de um jogo combinatório entre os registros: real, simbólico e imaginário.  
Na psicose a consistência do aparelho psíquico pode se apresentar pela amarração do sinthoma, que no caso de Joyce se fundamenta na identificação ao “artista”. Na neurose, temos o sinthoma borromeano, que se dá pelo quarto termo que é o nome-do-pai. Importante ressaltar que o analista ensina, de certo modo, o analisando a fazer uma emenda entre o sinthoma e o real, parasita de gozo, ou seja, trata-se de perceber o gozo que sustenta o sintoma neurótico enquanto direção do tratamento.
Joyce cerra, circunscreve o seu gozo obscuro a partir da construção dessa identificação ao significante “artista”, isto é, como não possuía um nome próprio, que pudesse ter sido transmitido pelo pai, se utiliza de um nome comum, “o artista”, como um nome próprio. O nome do “Um” de Joyce, do Um do pai é o artista. Joyce então responde, de modo a suprir o desenodamento do nó com o sinthoma.
O sinthoma de Joyce impedia que ele apresentasse sintomas, ou seja, ele não apresentava sintomas psicóticos, porque se protegia na nomeação “artista”.
Lacan (1975-76) nos afirma que Joyce faz uma escolha, uma vez que, precisa encontrar uma via por onde tomar a verdade. Que nos conduz a sua identificação a nomeação “artista”, a qual parece se fartar. Interessante a seguinte citação:
Ainda mais porque a escolha, uma vez feita, não impede ninguém de submetê-la à confirmação, ou seja, de ser herético de uma boa maneira....a boa maneira é aquela que, por ter reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de usar isso logicamente, isto é, de usar isso até atingir seu real, até se fartar. (LACAN, 1975-76, p.16)

Outro ponto apresentado por Joyce, que também nos remete a estrutura psicótica refere-se a uma dada equivalência suposta na relação entre o homem e a mulher. Nora caía como uma luva para Joyce, ou seja, era seu apêndice. Aqui podíamos afirmar a existência da relação sexual, embora profundamente imaginária. Aqui a mulher contém o homem. Nora faz uma borda ao real de Joyce, cai como uma luva ao avesso de seu gozo obscuro, ao transbordamento do real. Trata-se de uma luva ao contrário que amarra. Contorna o gozo obscuro de Joyce. Nora não possui, portanto, para Joyce o significado da mulher amada, mas antes daquela que lhe cai como uma luva.
Mas cabe apontarmos que o que a psicanálise vem desvelar no plano da relação entre os sexos é exatamente a não complementariedade, a não proporção sexual entre o homem e a mulher. O que nos condena a uma solidão existencial, a qual, temos que nos haver. É no Seminário XX de Lacan que a dimensão do sujeito aparece associada à dimensão do corpo. De um sujeito que deve ser compreendido encore, isto é, “no corpo”. A inscrição significante no corpo real do sujeito passa a ser definida como parlêtre ou falasser, uma vez que, o sujeito é um ser falante.
A noção de falasser nos aponta que o significante não possui apenas o efeito de significado, tem também um efeito de fazer uma afetação no corpo do sujeito. O significante afeta o corpo do sujeito, o seu corpo real. Trata-se do efeito de gozo e do efeito de sujeito, situado em um corpo. O que quer dizer que o significante deixa no corpo traços.
O sujeito do inconsciente, puro sujeito da lógica, passa a ser um sujeito com um corpo afetado pelo significante. Ao tratar dos significantes, chegamos a noção de discurso, proposta por Lacan (1969-70). Este afirma que todo discurso é semblante. E neste sentido, a relação entre os sexos se dá no plano de um fazer semblante que “possui o falo”, do lado masculino e fazer semblante “que o é”, do lado feminino. A mulher escolhe um homem, ao qual, deseja fazer semblante.
Na psicose não se trata de semblante na relação entre os sexos, mas sim de uma suposta complementariedade, é como se a relação sexual existisse. A luva de Nora à Joyce encontra-se nesta dimensão.
Em relação ao nó borromeano, Lacan (1975-76) ressalta como característico o fato de que se um dos seus elos se soltar, os demais também se soltam. Afirma que é preciso supor tetrádico, o que faz o laço borromeano, ou seja, a perversão, que quer dizer “versão em direção ao pai”, sendo, portanto, o pai um sinthoma. Trata-se de estabelecer o laço entre imaginário, simbólico e real, a partir da ex-sistência do sintoma.
Deste modo, podemos pensar o complexo de édipo, enquanto tal, como um sintoma. Na medida em que o Nome-do-Pai é também o pai do Nome e assim tudo se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário.
Em Joyce, o Outro se manifesta sobrecarregado de pai, na medida em que esse pai, conforme “Ulisses” para ser sustentado busca a arte, a qual faz a família de Joyce não apenas subsistir, mas também torná-la ilustre. Do mesmo modo, torna ilustre, o que chama de “My Coutry”, ou seja, a “alma incriada de minha raça”, tal como encontramos no final de “Um retrato do artista”.
Lacan (1975-76) se pergunta: “Em que o artifício ser artista pode visar expressamente, o que se apresenta de início como sintoma? Em que a arte pode desfazer o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade?”
Daremos prosseguimento as nossas elaborações, visando chegar a uma resposta ao questionamento anterior. Por ora, podemos afirmar que Joyce escreve como uma forma de possibilitar a amarração dos registros: imaginário, simbólico e real.
Lacan (1975-76) qualifica como borromeano, o nó, a partir de suas novas formulações em relação ao sujeito, o qual, agora é definido como falasser, ou seja, aqui a dimensão do real alcança o seu lugar pela presença do corpo e este adquire seu estatuto respeitável, graças a esse nó.
Joyce através de sua arte demonstra um modo privilegiado de amarração dos registros: imaginário, simbólico e real através do quarto termo: o sinthoma. Cabendo lembrar que não se trata de um “sinthoma borromeano”. A amarração dos registros imaginário, simbólico e real por um quarto elo nos demonstra o fato de que não existe uma unidade perfeita de nó borromeano. Sendo que a sustentação psíquica do sujeito se dá sempre através do quarto laço, que é o sinthoma.
O nó borromeano se configura com a presença do real por baixo, o imaginário em cima do real e o simbólico por cima do imaginário e por baixo do real. Lacan nos afirma como borromeano o fato de que dois elos encontram-se livres um do outro, sustentando a ex-sistência do terceiro, ou seja, do real em relação ao imaginário e ao simbólico. O que quer dizer que o real só tem ex-sistência ao encontrar, pelo simbólico e pelo imaginário, a retenção. O sinthoma borromeano se caracteriza pelo fato de que quando se desfaz um elo, todos se desfazem, sendo, portanto menos consistente do que o sinthoma na psicose.
O lapso presente em Joyce encontra-se no enlaçamento do simbólico com o real. Observa-se uma certa degradação na escrita de Joyce a partir de “Stuart Little” “e do “retrato do artista”. Chegando a um ponto no qual não há mais ordem. A escrita vai perdendo sua articulação linguajeira, deixando de apresentar um equilíbrio entre imaginário e simbólico e tornando-se real. Contudo, não se pode deixar de afirmar um “savoir-faire”, um saber fazer com o sinthoma “artista”, que o manteve fora do surto.
Interessante que Lacan (1975-76) em seu Seminário “O Sinthoma” apresenta o inconsciente como o real, ou seja, como aquilo que se apresenta fora do sentido, fora da estrutura linguajeira. Afirma, no entanto, que devemos mapeá-lo através do sinthoma, para que então ele não apareça apenas como gozo obscuro. A análise permite novos modos de amarração, de circunscrever o gozo. O que o sinthoma faz é dar um sentido ao real, o circunscreve, evitando que surja de modo sintomático.
A saída de Joyce está fundamentada na escrita, que é um fazer que dá suporte ao pensamento. Segundo Lacan, é através de uma lógica de sacos e cordas que se pode compreender como Joyce funcionou como escritor. A escrita mostra-se essencial ao seu ego. A função da escrita para Joyce refere-se a construção de um certo enquadramento, ou seja, trata-se de algo que pode ser circunscrito. “Ulisses” de Joyce o demonstra, uma vez que, cada capítulo expressa um dado enquadramento, um certo sentido.
Lacan em seu Seminário, livro 23: “O Sinthoma” evidencia que a falha, o lapso entre os registros psíquicos jamais se produz ao acaso, mas sim dada a uma finalidade significante. Desta forma, importante nos perguntarmos sobre o sentido a ser dado ao que Joyce testemunha. Não se trata apenas da relação de Joyce com o seu corpo, mas sobretudo a psicologia dessa relação. Isto é, a imagem confusa que temos do nosso próprio corpo.
Lacan afirma que o masoquismo não está de todo excluído na relação que Joyce mantém com o sexual. Afirma como impressionante as metáforas que emprega, sobretudo a algo que se destaca como uma casca. Trata-se de uma relação de repulsa com o seu próprio corpo. É como alguém que afasta uma lembrança desagradável. A forma como Joyce deixa cair a relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para um analista. O fato de não haver nenhum interesse nesse corpo enquanto imagem é o que assinala que o ego possui para ele uma função particularíssima.
Em Joyce, o que ocorre é que o ego corrige a relação faltante, ou seja, não enoda borromeanamente o imaginário ao que faz cadeia com o real e o inconsciente. Pelo artifício da escrita recompõem-se o nó borromeano.
Lacan então afirma que é a partir de Joyce que é possível tocar em algo que jamais havia considerado, a saber: a dimensão do real. O que impressiona no texto de Joyce é exatamente o número de enigmas que encerra. Apresenta a “diz-mensão”, produzindo equívocos no leitor. Interessante a pergunta que Lacan se faz nesse sentido: “Joyce, como escritor, por excelência do enigma não seria a consequência da cerzidura tão malfeita desse ego, de função enigmática, de função reparadora?”
Suas epifanias sempre se caracterizam pela mesma coisa, trata-se da consequência do erro no nó, ou seja, que o inconsciente está ligado ao real. A epifania de Joyce é o que faz com que graças a falha, inconsciente e real se enodem. A ruptura do ego libera a relação imaginária, se tornando fácil imaginar que o imaginário cairá fora, uma vez que, o inconsciente lhe permite isso incontestavelmente.
Lacan (1975-76, p.13), ao ler Joyce, afirma: “um enigma é uma enunciação de uma tal ordem que não lhe encontramos o enunciado: há um dizer, alguma coisa se diz, mas o que é dito nos escapa”. Neste sentido, podemos dizer que as entrelinhas do enigma devem ser apreendidas, seus escritos soam como fora de si, exigindo muito trabalho para aqueles que ousam lê-lo.
Há na obra de Joyce enigmas que envolvem seu próprio criador, ou seja, enigmas que, como um nó bastante particular, se tramam em torno de Joyce, nos escritos que ele corporifica. São enigmas envolvendo o tema da criação, da paternidade, da loucura e do nome.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: Mais, Ainda. Trad. M.D. Magno, 3º Ed, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008. 
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

SOBRE O LAÇO SOCIAL E O AMOR

Sobre o laço social e o Amor
Renata Craviée F. Mendonça¹
Coautora: Cristina Moreira Marcos²

 Este trabalho discute a função privilegiada do amor para os seres femininos enquanto uma forma de resposta ao mal estar dos laços sociais, sobretudo na atualidade, e como forma de realização legítima deste, através do laço amoroso.  
No “O Mal estar na Civilização” (1930), Freud aponta que os relacionamentos humanos representam a causa de maior sofrimento do homem. Assim nos permitimos dizer que o mal estar na civilização é o mal-estar dos laços sociais que se apresenta enquanto uma inadequação em relação às regras que teriam o propósito de regular os relacionamentos entre os seres humanos.
Uma curiosa consideração de Freud se refere à ideia de que as mulheres seriam pouco propensas a atividades de sublimação ou de renúncias em nome da civilização e neste sentido nos perguntamos sobre o desejo das mulheres, pois se estes não estão centrados rumo aos interesses da cultura, podemos nos perguntar em qual direção o desejo feminino caminha.
Tal apontamento freudiano é justificado no sentido de que para elas os interesses da vida sexual e da família estariam em um primeiro plano, no entanto, atualmente observamos uma significativa mudança, uma vez que, hoje muitas mulheres centram suas atividades nos campos intelectuais, artísticos e filosóficos, o que contribui para o desenvolvimento da cultura. Apesar disso, no entanto, persistimos com a pergunta em relação ao laço amoroso feminino.
Segundo Freud em “O Mal estar na Civilização” (1930), o amor sexual representa a mais intensa experiência da sensação de prazer, ou seja, o grande modelo para a busca da felicidade. No entanto, interessante pensarmos sobre as relações entre amor e civilização, uma vez que, uma das mais importantes tarefas civilizatórias é justamente a realizações dos laços sociais, contudo com uma perda necessária e irremediável da dimensão do puro princípio do prazer.
Segundo o ensino freudiano, o programa do “tornar-se feliz”, imposto pelo princípio do prazer aos sujeitos não pode ser realizado, sobretudo no campo amoroso, pois o que se vê é um número extremamente reduzido de pessoas que conseguem obter à satisfação almejada nos relacionamentos amorosos. Neste ponto, Freud aponta a necessidade humana de se aproximar desta busca de satisfação, o que relaciona à constituição psíquica do sujeito.
Freud discute os propósitos da civilização, neste trabalho, o da proteção do homem contra a natureza e o de ajustar os relacionamentos mútuos. Sendo a vida humana, em comum, possível graças a realizações dos laços sociais em detrimento do indivíduo isolado. No entanto, a civilização em suas exigências de renúncia às pulsões pressupõe uma frustração ao campo dos relacionamentos sociais. O que quer dizer que, se por um lado, a civilização convida os sujeitos à formação dos laços sociais, ela também promove frustrações e sofrimento, sendo que, no campo do amor Freud afirma que nada deixa o homem tão indefeso, tão desamparadamente infeliz quando da perda de seu objeto amoroso.
Freud aponta que quando o homem descobre o amor sexual como o protótipo da felicidade este passa a buscar o caminho das relações sexuais, tornando o erotismo genital o ponto central de sua vida. No entanto, isto tornou o homem dependente do mundo externo e exposto a um sofrimento extremo nos casos em que fosse rejeitado. E é neste percurso que se compreende a transformação da pulsão em impulsos com finalidades inibidas evitando-se assim o sofrimento.
Freud então aponta que a mulher se torna hostil à civilização por ter sido relegada a um segundo plano no desejo dos homens, pois para estes estaria em primeiro plano os objetivos primordiais da cultura. No trabalho freudiano “O Mal estar na Civilização” (1930), o autor conclui que diante das exigências da cultura, a importância da vida sexual enquanto fonte de felicidade e busca de satisfação, enquanto objetivos de vida, diminuem sensivelmente.
Aponta então como consequências do processo civilizatório a existência de relacionamentos amorosos, inibidos em sua finalidade, a restrição à vida sexual, e deste modo, a formação das neuroses.
Somada a questão acerca do desejo das mulheres, interessante, por outro lado, problematizarmos as manifestações de nosso mundo contemporâneo, uma vez que, segundo Laurent, citado por Drummond (2006) há um grande fracasso e desordens no campo do amor associados à existência de uma sociedade narcisista, individualista, na qual, reina a lógica do consumo, ficando as relações submetidas a um registro extremamente objetalizado.
Assim como Freud em “O Mal-estar na Civilização” (1930), Lacan em Televisão (1974) preocupa-se com o mal-estar na modernidade e o diagnostica como produto do discurso do capitalista. Lacan afirma que este sim é o laço social dominante em nossa sociedade.
Segundo Quinet em “Psicose e laço social (2006)” o que caracteriza o discurso capitalista é a foraclusão da castração, ou seja, foraclusão da sexualidade e da diferença dos sexos. Trata-se de um discurso que exclui o outro do laço social, pois os sujeitos só se relacionam com os objetos-mercadoria, comandados pelo significante mestre: capital. Neste sentido, podemos dizer que é um discurso que não faz laço social.
BAUMAN em “Amor Líquido” (2004) discute o relacionamento humano, entre homens e mulheres contemporâneos, os quais, segundo ele, se encontram desesperados por terem sido abandonados aos seus próprios sentidos, facilmente descartáveis, no entanto, ansiando pela segurança do convívio, do “relacionar-se”. Contudo, no lugar do “relacionar-se” e dos “relacionamentos”, o que se vê são as pessoas falarem em “conexões”, “conectar-se” e “ser conectado”, em vez de parceiros preferem falar em “redes”. Diferentemente de parcerias que ressaltam o engajamento mútuo, a rede serve de matriz tanto para “conectar” quanto para “desconectar”, sendo ambas as escolhas igualmente legítimas, gozam do mesmo status e têm importância idêntica.
A constituição da sexualidade feminina, segundo Freud, nos convida a pensar acerca da necessidade da menina de subjetivação da dimensão da falta, da ausência do órgão fálico, que se refere ao significante mestre, que regula a diferença entre os sexos e devido a esta questão deverá responder sobre o seu ser feminino, que equivale a buscar respostas sobre o que quer uma mulher.
Freud busca compreender a sexualidade feminina através do mito de édipo, no qual, as meninas seriam aquelas não dotadas de falo e percorrendo esse caminho, aponta que a verdadeira saída feminina se refere a busca pelo falo na figura de um homem que o daria sobre a forma de um filho. O que equivale a dizer que Freud faz coincidir a maternidade com a verdadeira mulher, com o legítimo desejo feminino. Deste modo, Freud anuncia que um modo privilegiado de fazer laço da mulher estaria localizado no campo da maternidade.
No entanto, Lacan vai mais além da mulher freudiana ao constatar que o desejo feminino pode não passar necessariamente pela castração e pela lógica fálica, mas que está para além desse registro, muito embora não se possa dizer que não estejam também referenciadas pelo falo. A fala, aqui se apresenta, como um testemunho de que o falo não é a única coisa que interessa às mulheres. Pois quando estas se colocam a falar, a dizer de suas questões o amor aparece com uma importância ímpar. Talvez possamos dizer, fazendo aqui um trocadilho de significantes, que a fala surge como o falo, objeto do desejo, que para as mulheres encontra-se firmado nas questões do amor, no discurso amoroso.
Podemos afirmar que o amor ocupa uma função e lugar privilegiado para as mulheres, tratando-se de uma paixão fundamentalmente feminina. Para uma mulher, o amor é a condição de seu gozo sexual, ou seja, para gozar a mulher se insere nas coordenadas do discurso amoroso. Para Lacan, o que está implicado na lógica amorosa feminina, no sentido da fundamental relação delas com o amor é que se oferecem como objeto do fantasma do homem para obter em troca uma resposta de amor.
Podemos nos perguntar então, o que estaria em jogo quando se trata do desejo feminino e do privilégio dado ao amor pelas mulheres. Para isso, o gozo feminino, como algo mais além do falo, pode ser entendido como esse lugar que Lacan escreve como: S (A), com esse matema que descreve como o significante da falta do Outro, o que nos ajuda a entender que a paixão feminina voltada ao amor se refere a esse movimento do ser feminino de se colocar enquanto significante que completaria a falta do Outro, do seu parceiro amoroso.
Questão fundamental à nossa discussão refere-se à relação da menina com a sua mãe, pois Freud faz uma descoberta de que a relação entre ambas tem uma importância incomparável a que poderíamos atribuir na relação dos meninos com a mãe, uma vez que, trata-se de um duradouro período, o qual, a menina busca algumas respostas sobre o seu ser feminino na mãe. No entanto, esta não pode lhe responder, pois não possui o atributo fálico necessário. Falta significantes que nomeiem o ser feminino, que respondam o que é uma mulher, o que ela deseja.
Lacan em “O Aturdito” (2003) aponta que a problemática da feminilidade repousa sobre a questão da existência, ou seja, do que pode ser atribuído às mulheres lhes conferindo existência. Que é exatamente uma disjunção entre o ser e a existência, trata-se da paixão fundamental da dor da feminilidade.
Assim Lacan afirma que uma mulher espera de sua mãe a subsistência, o que pode ser observado pela força, imensidão e enormidade da demanda da menina dirigida à sua mãe. Aqui o que se tem é um desmedido, um sem limite correlacionado ao real da posição feminina, ou ao impossível da posição feminina No entanto, trata-se de algo que a mãe, seguramente, não lhe pode dar, uma vez que, não lhe pode dar nem a existência enquanto mulher e nem o ser de mulher e tampouco a substância feminina. Trata-se de algo da ordem do impossível de uma transmissão.
Desta forma, nos aproximamos da concepção de que a demanda de amor feminina, como Lacan demonstrou, é uma demanda que não cessa e que pede “ainda mais”, pois do lado feminino não há um limite.
Esse “ainda” talvez possa ser entendido como fonte de vários mal entendidos na relação da menina com a mãe, com o pai e porque não dizer dos desencontros pelas vias amorosas. Trata-se, portanto, do mal estar dos laços sociais, com novos formatos na atualidade, se sustentando muito menos e a duras penas, mas que a mulher busca através desse “ainda” um signo proveniente do Outro, signo de uma presença que dê, que possa dar nada mais do que o signo e, portanto encontra-se localizado pelas vias do discurso amoroso.
Podemos concluir com Freud em “Psicologia das Massas e Análise do Ego (1921)” quando afirma que o vínculo social é um vínculo erótico ou amoroso. E se pensarmos que há nas mulheres uma propensão a buscarem no amor uma resposta sobre o mal-estar dos laços poderemos então concordar com a colocação de Freud em “Sexualidade Feminina” (1931) que as mulheres são seres eminentemente sociais daí percebermos o enorme dispêndio de energia mental voltada à construção dos laços sociais, sobretudo do laço amoroso. Como diria Miller (2005, P.42), o amor é capaz de fazer a ligação dos “um-sozinho”, sujeitos tal como se encontram na atualidade.
Referências Bibliográficas:


ANDRÉ, Serge. O que quer uma Mulher? Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 289 p.
BARROS, Fernanda Otoni. O objeto “a” é um fundamento do laço social. Revista Eletrônica do IPSM-MG, Ano 01, N° 01, Julho a Dezembro de 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.15-54.
BESSET, Vera Lopes & ESPINOZA, Marina Vieira. Sobre laços, amor e discursos. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v.15, N.02, p. 149-165, Agosto, 2009.
DRUMMOND, Cristina. Uma política do Amor. Curinga, Escola Brasileira de Psicanálise. Belo Horizonte, Nº 22, p. 11-15, Junho, 2006.
FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: vol 18: Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921). Rio de Janeiro: Imago (1925-1926). P.79-143.
FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: vol 21: Sexualidade Feminina (1931). Rio de Janeiro: Imago (1927-1931). P.231-251.
FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: vol 21: O Mal-estar na Civilização (1930). Rio de Janeiro: Imago (1929-1930). P.67-148.
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MILLER, Jacques-Alain. Uma Conversa sobre o Amor. Opção Lacaniana online nova série, Ano 1, Número 2, Julho, 2010.
QUINET, Antonio. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006.
SUÁREZ, Esthela Solano. As mulheres e as suas paixões. Revista Eletrônica do Núcleo SEPHORA. Ano 2, Nº03, Novembro de 2006 a Abril de 2007.